Este mês, a Dra. Giselle Seabra, uma das coordenadoras do Departamento de Cirurgia e Oncologia da SBDRJ, aborda o tema “Lidocaína e cirurgia dermatológica”.
Vamos à leitura:
Desde o início da cirurgia, o manejo da dor foi sempre um desafio a ser ultrapassado e um limite a ser quebrado. Os povos andinos conheciam os efeitos estimulatórios e euforizantes da cocaína, presentes nas folhas de Erythroxylon coca há séculos. Somente em 1860 a cocaína foi isolada por Albert Niemann, que constatou que a mesma causava entorpecimento da língua. As propriedades anestésicas da cocaína levaram à sua classificação como o primeiro anestésico de ação local.
Em 1884, Carl Koller introduziu a cocaína na prática clínica como um anestésico para cirurgia oftalmológica e até o início do século XX era possível encontrar produtos cujo princípio ativo era a cocaína. Experiências posteriores, realizadas por Sigmund Freud e outros, demonstraram o grande potencial para desenvolvimento de dependência química, o que levou a sua proibição em 1914. A lidocaína, o anestésico sintético de maior uso na Dermatologia, só foi sintetizado em 1943. Apesar dos anestésicos serem considerados seguros, reações alérgicas, absorção sistêmica e morte podem ocorrer, quando os cuidados com o uso destas substâncias não é observado.
A principal causa de complicações é o aumento da concentração plasmática por injeção inadvertida intravascular ou dose excessiva. Cuidado redobrado deve existir nos pacientes cardiopatas (ICC), em uso de beta bloqueadores ou pacientes com defeitos da pseudocolinesterase, pelo risco de toxidade com doses menores. Em geral, o sistema nervoso central é mais susceptível às ações farmacológicas dos anestésicos do que o sistema cardiovascular. Os sintomas são dose dependente e nos quadros iniciais o mais importante é ventilar e administrar oxigênio.
Cuidado com os sintomas listados abaixo, eles progridem a medida que a concentração sérica da lidocaína aumenta:
* Tinido, visão turva, sensibilidade à luz, náusea, tonteira, gosto metálico, fala acelerada.
* Nistagmo, alterações da fala, alucinações, espasmos musculares localizados, tremor fino.
Somente com doses maiores aparecem:
* Convulsões focais ou generalizadas.
* Apnéia, coma, PCR (parada cardiorrespiratória).
Os sintomas cardiovasculares se manifestam apenas com níveis séricos muito elevados ou pelo efeito da epinefrina.
Na prática dermatológica diária, pelo seu perfil de segurança (por ser do grupo amida), rapidez de ação e metabolização, o anestésico mais utilizado é a lidocaína nas concentrações de 1 a 2% com ou sem epinefrina. A dose máxima de lidocaína varia entre 3,5 mg a 5mg/kg sem epinefrina (dependendo da fonte lida) e de 7mg/kg com epinefrina. Em crianças a dose é menos da metade – 2 e 3,5 mg/kg – respectivamente.
As contra-indicações ao uso da epinefrina são: hipertensão, doença cardiovascular ou doença vascular periférica grave, hipertireoidismo, feocromocitoma. Gravidez e instabilidade psicológica são contra-indicações relativas.
Quando o procedimento é mais longo ou a área a ser operada é grande, deve ser feita uma solução anestésica com lidocaína, soro fisiológico e epinefrina, para que se use uma dose total menor do anestésico.
No Brasil, mesmo antes da publicação da técnica intumescente de Klein, em 1987, já se utilizavam soluções de lidocaína e adrenalina em soro fisiológico, na realização de procedimentos cirúrgicos dermatológicos, prática difundida por Ival Peres Rosa, chefe à época do setor de Dermatologia do Hospital Municipal de São Paulo. Os objetivos básicos eram diminuir o sangramento e proteger estruturas nobres subjacentes. Ainda hoje é uma das soluções mais utilizadas em cirurgia dermatológica.
Lidocaína a 2% ……………………….10,0 mL
Adrenalina 1:1.000 ………………….0,4 mL
NaHCO3 8,4%………………………..4,0 mL
SF…………………………………………40,0 mL
Nesta fórmula, a concentração de lidocaína fica abaixo de 0,4% e 40 ml é a quantidade mais que necessária na maioria dos procedimentos dermatológicos. A adição de bicarbonato diminui o desconforto na injeção da solução na pele e a adrenalina promove vasoconstricção, diminuindo o sangramento, porém diminuem a estabilidade da lidocaína e portanto a sua eficácia a medida que o tempo de preparo se distancia do momento de uso efetivo. A solução deve ser preparada no ato do procedimento, prontamente utilizada e jamais guardada para uso posterior.
Como regra prática no consultório
* LIDOCAÍNA SEM EPINEFRINA
Os tubetes têm lidocaína a 2% e volume total de 1,8 ml → 36 mg de lidocaína. Em um adulto de 70 kg, poderemos usar entre 7 a 10 tubetes (3,5 mg a 5 mg/kg).
O frasco-ampola tem lidocaína a 2% e volume total de 20 ml → 400 mg de lidocaína. Considerando um adulto de 70 kg, teremos, como dose máxima entre 3,5 mg/kg a 5 mg/kg – 245 mg a 350 mg, ou seja menos que 1 frasco-ampola inteiro.
* LIDOCAÍNA COM EPINEFRINA
Se considerarmos os tubetes e frascos ampolas com epinefrina, essa dose sobe para: 13 tubetes ou 1 frasco ampola inteiro com 20 ml (7 mg/kg).
Como resumo final, o mais correto é pensar: se preciso de um volume grande de anestésico, é mais seguro usar a solução anestésica e me manter longe da dose máxima tóxica. Considerando a solução anestésica com concentração final 0,4% de lidocaína (0,004 mg), a dose máxima em um adulto de 70 kg está longe de ser atingida com 40 ml de solução.
Bibliografia
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